Opinião

Fábio Possik Salamene: prisão em segunda instância, mais uma violação à cidadania

O direito brasileiro prevê duas hipóteses de prisão. Uma decorrente da condenação após o trânsito em julgado, outra, instrumental, a fim de garantir o resultado útil do processo, ou seja, naqueles casos em que o réu, caso permaneça solto, possa colocar em risco a produção das provas ou o cumprimento da sentença e, ainda assim, somente  quando outras medidas menos gravosas não forem suficientes à garantia da aplicação da lei penal.

O quanto mais que se disser sobre a privação da liberdade é falácia. Essa conclusão decorre, não de meras convicções dogmáticas ou filosóficas, mas também das legislações ordinária, constitucional e internacional.

Tramita no congresso nacional uma tentativa de elidir mais essa conquista democrática, sob o sofista argumento do incremento da efetividade do sistema de justiça (PEC 199/2019).

Embora já não haja cabimento à prisão como consequência obrigatória da condenação em segunda instância, pelo disposto no artigo 283 do Código de Processo Penal e no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, qualquer alteração desses dispositivos violaria o direito internacional cogente, em face do disposto no art. 30 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, que veda retrocesso em matéria de direitos e garantias fundamentais, da qual o Estado brasileiro é signatário e, portanto, à qual deve submeter-se, sob pena de sanções internacionais.

Assim, não é possível vislumbrar a compulsoriedade da prisão antes do trânsito em julgado, sequer mediante alteração do texto constitucional. Tanto assim que o constituinte brasileiro erigiu os direitos e garantias constitucionais do acusado à condição de cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, 4º, IV da Carta Política.

Noutro viés, várias questões inerentes às situações concretas vivenciadas no quotidiano brasileiro não recomendam a antecipação do cumprimento da pena.

À míngua de efetivo controle externo das atividades judiciária e acusatória, que conduz à ausência de critérios objetivos na escolha dos destinatários da persecução penal e permite eventual, raro, mas ainda assim indecoroso acertamento entre acusadores e julgadores, é motivo bastante para repugnar a prisão antes de esgotados todos os meios de acesso à jurisdição.

Suposto retrocesso revelará a opção pela comodidade, que faz expungir sensível progresso civilizatório, em detrimento do desgaste de labutar contra diversas causas sociais indutoras da alta criminalidade, tais como o desequilíbrio social, sucateamento do ensino e o abandono da saúde pública.

Não se olvide, por outra angulação, a existência de enormes distorções plasmadas no Código Penal, prestes a completar 80 anos de existência, sem as reformas adequadas, embora sabidamente anacrônico, cuja visão privatista e elitista implica em rigoroso enfrentamento a pequenos delitos tipicamente cometidos no seio das classes sociais mais baixas e excessiva benevolência com crimes altamente nocivos à coletividade, praticados por agentes políticos, administradores públicos e as elites empresariais.

Para a tanto se chegar, observem-se as condições da ação penal, as penas e as causas de extinção de punibilidade reconhecidas em favor dos crimes praticados contra a administração pública, dos crimes eleitorais e dos crimes tributários.

Mais evidente fica a perniciosidade da malfadada ideia ao ensejo de qualquer análise de seu impacto sobre o sistema carcerário brasileiro, caro, corrompido e intangido por quem tem obrigação de fazê-lo. São 800 mil presos, dos quais em torno de 40% provisórios. Quando o mundo todo foge do encarceramento como única solução para a criminalidade, e que no Brasil enseja reincidência superior a 75%, alguns querem retroceder.

Onde serão esses condenados custodiados? De onde virão os recursos públicos necessários? A tarefa será entregue à iniciativa privada, como ocorreu em alguns países que caminham para elisão da medida por seu insucesso, permitindo-se a alguns lucrarem com a miséria humana? Não custa lembrar: se dobrada a quantidade de presos e se cada um desses custa em média R$ 3.400,00 aos cofres públicos, nossa despesa será de aproximadamente R$ 32.000.000.000,00 (trinta e dois bilhões de reais) por ano, sem contar o custo para construção de, no mínimo, mais 1500 unidades prisionais, caso se pretenda manter a escorchante superlotação atual.

Com se não bastasse, se preocupação de fato houvesse com o combate à criminalidade, deveria o Estado brasileiro promover o policiamento de fronteiras, por onde se fomenta toda sorte de graves ilícitos, e com a preservação da autonomia da autoridade policial, sobre a qual há possibilidade de tentativas de ilegítima ingerência.

Já que se está tratando de causas que levam ao desprestígio do sistema de Justiça, porque não lembrar a existência de inúmeras áreas territoriais nas quais a atuação do poder público é obstada pela presença de criminosos, no mais das vezes milicianos e traficantes.

Se o prestígio da função estatal de promover justiça é o que move a preocupação legislativa, deveria esta, igualmente, se incumbir de determinar a criação de estruturas judiciárias capazes de enfrentar com celeridade as causas que envolvessem improbidade administrativa e corrupção, por exemplo, além de ampliar os meios de controle popular dos atos administrativos, especialmente os que afetem o erário.

Pode-se indagar se há noutros países previsão semelhante à que se quer implementar. A resposta é positiva, porém trata-se de nações mais adiantadas sob a perspectiva civilizatória, nos quais as garantias do cidadão em juízo são amplamente asseguradas, existe rigoroso controle externo da atividade judiciária e pleno respeito às prerrogativas dos advogados, como lembrado pelo Ministro Ricardo Lewandowiski na ADC 43-DF.

Aliás, se o coro dos advogados em face dessa conspiração contra a cidadania fosse audível, essa involução encontraria substancioso óbice.

Há que se indagar, então, se o Estado brasileiro arcará com eventuais indenizações nos casos em que os condenados em segunda instância forem recolhidos à prisão e posteriormente absolvidos, já que aproximadamente 40% dos recursos que aportam no Superior Tribunal de Justiça são providos. A este ensejo: qual será a punição dada a acusadores e julgadores que extrapolarem dolosamente os limites de suas funções?

Sim, lugar de criminoso é atrás das grades, não há dúvida, mas não sem antes garantir amplo direito de defesa. E que tal começar pelo encarceramento dos mais violentos, dos que causem danos mais difusos à coletividade, como corruptos e sonegadores, e dos que maculam a democracia mediante cometimento de crimes eleitorais, a exemplo do “caixa 2”?

Por fim, a PEC 119/2019, reforçando o direito penal das castas, se incumbiu de criar um subterfúgio, através da ação de revisão da sentença, cujo trânsito em julgado se antecipa mediante supressão de recursos constitucionais. Esta consistirá em sucedâneo processual dos recursos extintos, elitizando, ainda mais, o acesso à jurisdição e garantindo aos mesmos poderosos a manutenção de seus privilégios.

 Fábio Possik Salamene, Juiz de Direito

Twitter: @fabiosalamene