Opinião

Fábio Possik Salamene: O direito ao julgamento imparcial

No Brasil, de tempos estranhos, há quem vislumbre no punitivismo a panaceia para todos os males. O problema não está na rigorosa punição de condutas, conquanto absolutamente necessária e desejada, mas na persecução voltada contra os adversários, em desfavor dos quais os rigores da lei são impostos e as garantias são olvidadas, importando, para determinação do resultado, apenas o interesse do grupo circunstancialmente dominante, seja lá qual for o viés ideológico, político ou partidário deste.

Tanto assim que, sendo os acusados amigos ou correligionários, os conceitos também sofrem igual distorção, só que para beneficiá-los. Trocando em miúdos, o debate está sempre “fulanizado”.

Certo é que todo cidadão brasileiro tem direito a ser julgado segundo as regras processuais e constitucionais vigentes e essas, há muito tempo, impõem que o julgamento se dê por juiz imparcial, inclusive porque não há forma mais grave de despotismo que o praticado pelo Judiciário, ademais porque essa face do autoritarismo se revela, naturalmente, no ambiente de aridez intelectual e esterilidade científica incompatíveis com a função judicante.

Bem por isso a ciência processual elevou a imparcialidade do juiz, no mínimo, à causa de nulidade processual, que torna absolutamente sem efeito os atos maculados pela tendenciosidade do agente do Estado.

Dentre as circunstâncias que denotam a parcialidade do julgador, estão os impedimentos e as suspeições do juiz, previstas na legislação processual.

Não há na raça humana algum ser dotado de neutralidade absoluta, pois todos resultam de determinada formação social, ideológica, filosófica e deontológica amplamente divergente e suscetível a influências que antecedem a formação do raciocínio lógico. Isso é de hialina clareza, afinal “o homem é o homem e sua circunstância” (Ortega y Gasset).

Não obstante, o progresso intelectual da humanidade induziu às sedimentações axiomáticas necessárias à evolução do processo civilizatório, algumas vezes ameaçado pelo retrocesso. Desse modo, sem prejuízo da existência de valores intuitivos e imanentes à personalidade, esses não podem influenciar a decisão estatal, dado essa não traduzir a vontade individual do magistrado, mas sim a do Estado, cujos pressupostos estão nas leis e no Direito.

São comuns algumas situações práticas, demonstrativas da parcialidade do juiz. Dentre essas pode-se lembrar o ativismo judicial probatório tendencioso, a formulação de questionamentos voltados à obtenção de respostas prejudiciais ao acusado, as manifestações públicas de desapreço à parte, o vazamento de informações a fim de criar na opinião pública conceito desfavorável a qualquer das partes e a obtenção de benefício ou a promessa de vantagem à vista do resultado do processo.

A rigor, essas duas últimas hipóteses encerram as elementares do crime de corrupção, o que impõe ao Ministério Público a promoção da ação penal, sob pena de prevaricação. Não é o que se vê, mas o que deveria acontecer.

A ruptura da imparcialidade exige, para sua constatação, fatos objetivos, palpáveis. Jamais presumidos ou intuídos, sob pena da arguição da parcialidade se convolar em instrumento para violação ao princípio do juiz natural.

Não se entenda que o juiz deve permanecer inerte na condução do processo, como mero destinatário das provas. Contudo deve fazê-lo no interesse da verdade, do direito e da lei, não na busca da satisfação de interesses ou convicções pessoais. Ainda tem pertinência observar que, sobretudo no processo criminal, ao magistrado impõe-se o dever de atuar como garantidor dos direitos fundamentais do acusado, preservando a intangibilidade do contraditório, do devido processo legal e da ampla defesa.

A parcialidade sempre produz efeitos nocivos. Se mantidos os atos processuais viciados, há enorme deslegitimação e desprestígio da função estatal de fazer Justiça; se anulados, há procrastinação e impunidade em razão de erro formal ou a privação temporária de direitos, inclusive da liberdade.

 

Fábio Possik Salamene, Juiz de Direito.

Twitter: @fabiosalamene