Poucos problemas nacionais têm a persistência dos níveis de violência epidêmica, que nos assola há pelo menos 40 anos. Várias são as causas, dentre estas a legislação penal elitista e obsoleta, o sistema judiciário incapaz de promover o adequado cumprimento dessa regulação normativa quase esquizofrênica, o sistema carcerário abjeto em muitos sentidos e, por fim, a ausência de política nacional de segurança pública, que não prescinde de ampla reformulação das estruturas policiais, tanto em sua faceta investigativa quanto repressiva.
O número de homicídios no Brasil corresponde ao de países em guerra, o volume de drogas apreendidas não tem parâmetro no mundo, assim como o grau de letalidade da atividade policial, imbricado num ciclo vicioso que resulta na morte dos próprios agentes do Estado.
Quando se envelhece (“ainda bem, porque a outra opção é pior”, diria um amigo), é possível lembrar de manchetes da década de 80, nas quais se dizia “Rio em guerra civil”, e também de bravatas de candidatos dizendo que acabariam com a violência no Rio de Janeiro em 6 meses. Isso leva a crer que nada mudou para melhor, o que, por si só, impõe mudanças.
Evidente, então, que diversas medidas hão de ser tomadas, inclusive no plano legislativo, onde se observam lamentáveis retrocessos, a exemplo do que ocorreu com a relativização do controle da posse de armas e munições. Porém, a desmilitarização das polícias é condição sine qua non.
O ambiente e as necessidades que ensejaram a criação das polícias militares não remanescem, ocorrendo que estas se transformaram em corporações fortes e privilegiadas por benesses legais, que mantêm à custa de seu poderio econômico e político. É o que ocorre com o regime previdenciário ao qual estão afetas, a ser algum dia explicado.
Note-se que desmilitarizar as polícias não significa desarmá-las, mas abrigá-las, todas, no âmbito político da sociedade civil, promovendo-se suas aproximações com a comunidade e com as quais deveriam manter permanente diálogo, inserindo-se entre seus objetivos a defesa dos direitos da cidadania, sob a premissa do conhecimento destes.
É tão explícita a necessidade dessa desmilitarização que a maioria dos policiais militares a defendem, segundo pesquisa levada a cabo pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em julho de 2014, após entrevistar mais de 21 mil policiais. Desses, 73,7% são a favor da desvinculação entre a PM e o Exército, 76,1% opinaram pela desmilitarização, 93,6% pela modernização dos regimentos e códigos disciplinares e 87,3% pela reorientação do trabalho das polícias militares no sentido da proteção dos direitos da cidadania.
Noutro vértice, as polícias militares, como estão, saíram do controle da administração. Atingiram um grau elevado de perniciosidade que permite a milicianização e o envolvimento de muitos de seus membros com o crime organizado, sob abrigo interno da própria estrutura corporativa. À guisa de exemplo, foi o que sucedeu durante a ditadura militar (1964-1985), quando esta patrocinava o incremento do jogo do bicho, que cooptou no meio policial diversos de seus agentes, especialmente os mais violentos.
Isto para não falar nos mais recentes episódios criminosos de amotinamento, com nefastos efeitos para a sociedade, ocorridos no Espírito Santo (2017), na Bahia (2019) e Ceará (2020).
Embora seja difícil apontar a principal consequência dessa (des)organização, alguns efeitos deletérios podem ser indigitados com facilidade, como a crescente perda de credibilidade das funções estatais, não obstante seu farto custeio pela parte menos abastada da sociedade, o agravamento dos índices de criminalidade violenta, o aumento do poderio bélico dos criminosos e o altíssimo índice de reincidência.
A medida preconizada, no sentido de civilizar a polícia, está arrimada em fundamentos intangíveis, impondo-se às câmaras parlamentares a promoção das alterações legislativas. Se quiserem fazê-lo num nível minimamente adequado, podem começar pelo arquivamento do intitulado “projeto anticrime”, cuja denominação reflete a mediocridade de seu conteúdo e a obtusidade das ideias em que se funda.