De: Nilmar Lage, Pedro Grigori, Agência Pública/Repórter Brasil
Um aterro ilegal de 200 metros quadrados no interior de Minas Gerais abrigou por cerca de quatro décadas um depósito ilegal do agrotóxico Aldrin, um veneno letal, extremamente poluente e banido em mais de 100 países, incluindo o Brasil. O inseticida era usado em plantações de eucalipto, e ficou enterrado em valas de 50 centímetros de profundidade ao lado do córrego do Serra, que abastece a comunidade de Mandingueiro, no município de Itamarandiba.
Os produtos foram despejados entre 1974 e 1978, quando a Aperam BioEnergia alega ter parado de utilizar o inseticida em suas plantações. Desde então, ficaram esquecidos e enterrados. A retirada do produto só ocorreu em maio de 2019, após o Ministério Público de Minas Gerais instaurar, a pedido da comunidade, um inquérito que comprovou a contaminação.
Uma análise do solo da área rural próximo à cabeceira do córrego da Serra em 2017 encontrou a presença do inseticida Aldrin e do seu metabólito (substância resultando do metabolismo na terra) Dieldrin, na amostra de terra coletada. O Aldrin faz parte do grupo dos organoclorados, é facilmente absorvido pela pele e classificado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) como provável cancerígeno para o ser humano e animais, com evidências que o relacionam ao surgimento de câncer de mama, linfoma não-Hodgkin, carcinoma hepatocelular, entre outros.
Ao entrarem em contato com o solo, resíduos desse organoclorado podem acabar contaminando alimentos produzidos no local por décadas. Ele também pode ficar acumulado por longos períodos no corpo humano e de animais.
A descoberta do aterro ilegal de Aldrin se deve ao empenho dos moradores da pequena comunidade de Mandingueiro, que levaram a denúncia ao MP em 2017. “Fomos ao aterro e comprovamos que era verdade. Senti um mal estar, dor de cabeça, boca amarga, garganta pinicando. E fiquei indignado. A gente é do interior, não tem estudo pra saber o perigo do veneno igual especialista”, diz o motorista Frederico Macário.
Não foi só Frederico que se indignou com a situação. Vários moradores ficaram incrédulos com a toxicidade do produto. “Sabíamos que tinha Aldrin enterrado em todo canto, mas só agora descobrimos o que é isso, as doenças que causam e que tava na água. O Aldrin do nosso córrego vem da área do aterro. Nós bebemos a água do rio, como vamos viver? Eu não quero brigar com ninguém, só quero água pra beber, pros meus netos beberem”, apela Geraldo, que cresceu na comunidade.
Proibição
Nos Estados Unidos, onde ficavam as principais fábricas de Aldrin, o produto foi banido em 1974 devido à elevada permanência no meio ambiente. No Brasil, o Ministério da Agricultura começou a proibir a comercialização de Aldrin e de outros organoclorados em 1985. Na época, o produto continuou sendo produzido para exportação e permitido apenas para matar cupins e destinado a reflorestamento. Em 1998, o Ministério da Saúde baniu totalmente o produto.
Antes da proibição, a multinacional holandesa Shell tinha a patente para sintetizar e comercializar o Aldrin no Brasil, que era utilizado principalmente para o controle de cupins em culturas de algodão e milho.
Mas uma prova da permanência do produto é o fato que, mesmo vinte anos após a proibição, resíduos de Aldrin e de Dieldrin foram encontrados em 86% das amostras de água que abastecem os municípios brasileiros, conforme testes feitos pelo Governo Federal em 2017 e 2018 e divulgados no mapa da água da Agência Pública e da Repórter Brasil. Houve 30.973 detecções de 36.201 testes feitos em todo o país.
O Aldrin é um dos 12 químicos que fazem parte da lista Poluentes Orgânicos Persistentes (POP), listados na Convenção de Estocolmo, onde 152 países, incluindo o Brasil, assinaram um tratado se comprometendo a eliminar o uso destes produtos devido os efeitos tóxicos a longo prazo.
Relatórios e especialistas afirmam que as consequências do aterro ilegal de Adrin continuarão a ser sentidas mesmo após a remoção dos produtos. Por isso, em novembro de 2019 o Ministério Público de Minas Gerais entrou com uma ação civil pública contra a Aperam, pedindo que a empresa pague uma indenização ambiental no valor de R$ 1,5 milhão a serem utilizados na execução de um plano de recuperação e reabilitação da área contaminada.
Impacto no meio ambiente e na saúde da população
A reportagem visitou o município de Itamarandiba, e além dos efeitos ao meio ambiente, moradores relataram sintomas de intoxicação, como dores de cabeça, irritações pelo corpo, desmaios e convulsões, além do aumento nos casos de câncer na região.
Um dos denunciantes é o ex-motorista de ônibus Geraldo Moreira, de 57 anos de idade. Ele nasceu e cresceu na comunidade de Mandingueiro, fundada pelo seu avô. Geraldo ainda mora na mesma casa da infância, ao lado do córrego, hoje contaminado. “O córrego é a vida da comunidade. Nunca teve outra fonte de água a não ser ele e os afluentes. Quando eu era menino tinha gangorra aqui no córrego, a gente pescava, banhava, era a nossa vida”, lembra.
Tudo começou a mudar em 1974, quando a Aperam (na época chamada Acesita – Companhia de Aços Especiais Itabira) começou a plantar eucaliptos na região. “No começo foi uma evolução. Para você ter uma ideia, quando a empresa chegou, a gente ainda montava no cavalo e ia na cidade fazer a nossa compra. São 35 quilômetros (até o centro do município de Itamarandiba)”, diz Geraldo.
A chegada da empresa trouxe estradas para a comunidade e gerou um “boom” de empregos no manejo e plantio de mudas de eucalipto. Até os anos 1970, a Aperam atuava como empresa siderúrgica de aço inox, mas buscou expandir sua atuação com o carvão vegetal para produção de ligas metálicas, como fonte de aquecimento dos altos-fornos. Em 1974, fundou a Acesita Energética (atual Aperam Bioenergia) para suprir necessidades energéticas da planta da siderúrgica localizada em Timóteo.
Até hoje Geraldo guarda o recibo de venda das terras de seu avô para a Aperam, em 10 de abril de 1974. Atualmente, a empresa mantém 112.685,15 hectares na região e pode gerar mais de 400 mil toneladas de carvão por ano.
O município de Itamarandiba, que fica no Vale do Jequitinhonha, a 266 quilômetros de Belo Horizonte, ficou conhecida como a capital Brasileira do Eucalipto, segundo o site da prefeitura da cidade mineira de 32 mil habitantes.
Mas naquela época, para plantar eucalipto, planta não nativa da região, a Aperam utilizou vastamente o inseticida Aldrin, para extinguir os cupins e formigas que atacavam as árvores.
Ainda criança, com pouco mais de 11 anos, Geraldo começou a trabalhar na produção de eucalipto, tendo contato direto com o Aldrin. “Nós que éramos crianças passávamos com o regador molhando, empurrando terra com carrinho, tudo com o agrotóxico ali. Eles [funcionários adultos] misturavam o Aldrin na terra, e as mulheres passavam com uma máquina com pedal que ficava batendo no solo”, conta.
Outra criança que também manuseava o veneno era Onofre José, hoje com 58 anos de idade, e 12 na época. Ele lembra que o armazenamento do Aldrin era feito de modo descuidado, em barracões, tanto que o pai dele e outros moradores pegavam restos de Aldrin para aplicar em suas propriedades. “Jogava terra com Aldrin nos buraco das formiga e morria tudo. Pra nós era novidade matar formiga assim. Se a gente é leigo hoje, naquela época era pior, né? Meu pai trazia pra casa, achava que não tinha perigo”.
Eles só começaram a mudar de opinião quando um galo da família ciscou na área em que o veneno era aplicado e morreu. “Um galo que nós tinha lá em casa foi bicar lá e morreu com a crista pretinha,”, conta.
Onofre também tinha contato com o aterro montado pela empresa para descartar o pesticida. O local, à beira do córrego da Serra, era usado para enterrar as embalagens e restos de Aldrin após a aplicação nas mudas de eucalipto.
Logo chegaram as primeiras consequências, como desequilíbrio na fauna, fazendo com que mamíferos de médio porte, como o tatu ou o tamanduá, sumissem da comunidade, além da mortandade de peixes nas barragens de água da região.
No começo dos anos 2000 a família de Geraldo sofreu com diversas doenças. Duas de suas filhas tiveram crises convulsivas durante a adolescência, um dos sintomas de intoxicação por Aldrin, e ele teve câncer na medula. Na época, Geraldo não informou aos médicos sobre o contato com os agrotóxicos, já que ele nem imaginava que aqueles produtos poderiam causar problemas sérios. Os médicos nunca descobriram a causa das convulsões das filhas, que pararam de ocorrer na vida adulta.
Foram os problemas de falta d’água na região que levaram a população a descobrir a contaminação. Em 2007, o motorista Frederico Macário, hoje com 42 anos, informou ao município de Diamantina que a Aperam estava captando cerca de 30 caminhões pipa de água por dia do manancial, o que poderia estar causando a secagem da barragem. “Começaram a pesquisar o porquê da secagem da barragem e descobriram o Aldrin na água. Já tava secando as águas, e ainda contaminado?”, questiona. Frederico chegou a ir pessoalmente ao aterro ilegal antes que os agrotóxicos fossem retirados junto com outros membros da comunidade e diz ter sofrido sintomas de intoxicação aguda.
“A indenização não tira a dor de ninguém, mas precisa de um centro de diagnóstico de câncer, fazer uma junta médica para saber a realidade do povo”, completa Geraldo.
Os moradores da região também são assombrados por um alto número de casos de câncer. Um estudo produzido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), destaca entre os óbitos assistidos pelas Equipes de Saúde da Família em Itamarandiba, casos de câncer de colo de útero. Segundo dados do Ministério da Saúde, no ano de 2008, a segunda maior causa de morte no município foram neoplasias, um câncer. No ano de 2008, a doença representou 12,5% de óbitos. Quase a totalidade das mortes foram de mulheres: 6,1% dos casos remetiam ao câncer de mama e 6,1% ao câncer de colo de útero.
A Prefeitura de Itamarandiba afirmou à reportagem que passou a acompanhar o caso do aterro ilegal em 2017, quando a denúncia ao MPMG foi realizada. “Não podemos afirmar se em administrações passadas, ao longo das últimas décadas, o Município obteve ciência da disposição irregular desses produtos”, informou por meio da assessoria de imprensa.
A prefeitura informou ainda que a captação de água para abastecimento público da cidade de Itamarandiba é realizada no Rio Itamarandiba, na localidade de Ponte Santana, localidade à montante, ou seja, contra corrente, da foz do Córrego da Serra, onde ficava o aterro ilegal.
Empresa não quer pagar indenização
O aterro ilegal chegou ao conhecimento do Ministério Público em fevereiro de 2017, após denúncia de moradores que alegavam que o deposito estava poluindo solo e água da região. O MP instaurou um inquérito civil para investigar a existência da substância tóxica enterrada próximo a nascente do córrego e se o solo e a água haviam sido contaminados, o que acabou confirmado por relatórios técnicos.
Em maio de 2019, a Aperam realizou a remoção dos agrotóxicos do aterro. Dois meses depois, em julho, o Ministério Público propôs um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) para controlar os impactos causados pelo aterro, mas a Aperam não aceitou a base do acordo. Se aceitasse o acordo, a Aperam deveria reconhecer a existência da contaminação e pagar R$ 3 milhões em indenização a serem usados para executar um Plano de Reabilitação da Área Contaminada (PRAC) em até 12 meses.
Após rejeitar o acordo, a Aperam teve 30 dias para apresentar uma manifestação escrita, o que não ocorreu. Com isso, em novembro de 2019 o MP ingressou com uma ação civil pública com pedido de tutela de urgência, solicitando indenização por danos ambientais contra a Aperam pela manutenção do depósito ilegal de agrotóxicos.
“Diante dos fatos relatados, denota-se que a requerida, com sua conduta, apropria-se, de um bem pertence a todos, vale dizer, do direito à sadia qualidade de vida e do meio ambiente ecologicamente equilibrado, que a coletividade possui o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, denúncia o MP na ação.
O MP cita na ação civil diversas legislações federais que responsabilizam a empresa pela contaminação. A Lei nº 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, estabelece que o poluidor é obrigado, independentemente de existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade.
A Lei dos Agrotóxicos, de 1989, estabelece que o descarte de embalagens vazias ou com produtos de agrotóxicos são de responsabilidade de quem os utilizou, tendo que efetuar a devolução das embalagens no prazo de um ano após a compra.
O processo está sendo julgado na Vara Única de Itamarandiba. Em junho deste ano, a juíza Juliana Cristina Costa Lobato intimou a Aperam e o Município de Itamarandiba a se manifestarem sobre a ação em até cinco dias. Quase um mês após o prazo estipulado, em 31 de julho, a Aperam se manifestou, contestando a medida liminar do MP que pediu urgência na ação. Não há atualizações do processo desde agosto e não existe um prazo de quando o processo será julgado. De acordo com a assessoria do TJMG, a “juíza deverá apreciar essa solicitação quando o processo for concluso para ela”.
O procurador de Justiça Augusto Reis Ballardim diz no processo que a condenação da empresa pelo dano moral coletivo enfrentado pela população de Itamarandiba é necessária, e que o aterro tem provocado “rebaixamento no nível de vida da coletividade, que enfrenta consequências ainda incalculáveis para as presentes e futuras gerações”.
A reportagem entrou em contato com a Aperam BioEnergia por meio da assessoria de imprensa e fez diversos questionamentos, como o motivo das embalagens com Aldrin não terem sido retiradas antes e as ações que serão tomadas para diminuir os impactos das contaminações citadas no processo.
Por nota, a Aperam afirmou que laudos resultantes das análises realizadas por laboratórios credenciados junto ao INMETRO e apresentados para a Fundação Estadual do Meio Ambiente comprovam que não há qualquer contaminação da água na região, causada por eventual presença do produto citado. A empresa não respondeu os demais questionamentos, e preferiu destacar os certificados e selos obtidos pela empresa por suas boas práticas ambientais e sustentabilidade. Confira a íntegra da nota.
Em petição anexada no processo, a Aperam diz, por meio de seus advogados, não haver danos ao meio ambiente, não sendo necessária a reparação. “Não há prova da persistência de dano ao meio ambiente (que nunca ocorreu de fato), o que, segundo a jurisprudência pátria, leva à improcedência do pedido de reparação, sendo imprestável o pedido de depósito de caução de R$ 1.500.000,00 em juízo”, diz trecho do documento.
Caso seja condenada ao pagamento, a Aperam alega que haverá prejuízo e atraso aos pagamentos de salários de trabalhadores, pois “se verá privada de caixa para suportar pagamentos dos salários de empregados e fornecedores, que poderão ser demitidos, o que causará prejuízo e mazelas sociais em efeito cascata”.
A Aperam é uma multinacional listada em diversas bolsas de valores, e tem sede em Luxemburgo, no continente europeu. Em 2013, o então presidente da empresa na América do Sul, Clênio Guimarães, anunciou que a Aperam mundial faturou naquele ano US$ 5,1 bilhões, sendo US$ 1,3 bilhão apenas com a América do Sul. Essa foi a última divulgação de lucro da empresa.
Aldrin pode causar diversos problemas de saúde
Inseticidas à base de Aldrin começaram a ser utilizados na agricultura a partir da década de 1940. Ao ser exposto ao meio ambiente ou organismos vivos, ele é biotransformado em Dieldrin.
“Os organoclorados têm moléculas de cloro na composição. Uma das suas características é persistir por longos períodos no meio ambiente. Significa que uma área contaminada nos anos 70, como nesse caso, pode ter resíduos até os dias atuais no solo e na água. Se alguém plantar nessa área, os alimentos produzidos podem ter resíduos desses químicos. Os animais dessa região podem ter resíduos em suas carne e derivados, como no leite produzido, nos ovos, na manteiga ou no queijo produzido”, explica a pesquisadora e vice-coordenadora do Grupo de Trabalho de Agrotóxicos da Fiocruz, Aline Gurgel.
Outra característica alarmante é a bioacumulação, a propriedade dos organoclorados em se acumularem no organismo de seres humanos e animais. “A taxa de excreção dessas substâncias é muito lenta. Eles podem persistir no organismo por anos, e isso somado a exposição prolongada a esses agrotóxicos faz com que a pessoa sofra efeitos tóxicos no corpo por muitos anos. Os resíduos podem ficar acumulados em tecidos gordurosos. Podem se acumular nas glândulas mamarias, os fazendo serem excretadas até mesmo pelo leite materno. A exposição desses agrotóxicos durante a época de desenvolvimento da criança podem causar atrasos no desenvolvimento como um todo, de forma global”, conta a pesquisadora.
Um trabalho da Universidade Federal do Mato Grosso encontrou agrotóxico no leite materno de residentes de Lucas do Rio Verde (MT) em 2011, 13 anos após a proibição total do inseticida no Brasil.
A pesquisadora Aline Gurgel destaca que, após ter sido feita a retirada dos agrotóxicos do aterro ilegal, “é importante que seja adotado o mais precocemente possível um conjunto de medidas que envolvam desde a descontaminação e remediação da área, até um acompanhamento vitalício dessa população exposta, para observar um possível desenvolvimento de doenças”. Além disso, é preciso fazer um levantamento epidemiológico dos animais contaminados. “A empresa tem que ser responsabilizada pelo dano que causou, o que já é previsto pela legislação”, conclui.