De: Leandro Barbosa/Agência Pública
Era 16 abril de 2019, a Escola Estadual Marçal de Souza – Guateka, na Reserva Indígena de Dourados, promovia uma gincana de jogos tradicionais indígenas. Por volta das 7h40 da manhã, horário escolhido estrategicamente para evitar o forte calor do Mato Grosso Sul, os alunos disputavam uma maratona. O trajeto tinha 800 metros. Caminho que a Kaiowá de 17 anos Joice Quevedo Arce não conseguiu completar. Acometida por um mal súbito, ela desmaiou. Apesar da falta de aparelhos para atender casos de parada cardíaca, os primeiros socorros foram realizados pela Unidade Básica de Saúde (UBS) da reserva. Enquanto a médica tentava reanimar a adolescente com massagem cardíaca, a diretora da escola pedia ajuda ao Corpo de Bombeiros e ao Samu. Ambos os órgãos não responderam ao chamado. Joice morreu. No dia 14 julho, mais de um ano depois do ocorrido, uma denúncia feita pelo Ministério Público Federal (MPF) foi aceita e cinco servidores públicos se tornaram réus e responderão pela morte da adolescente.
Diante da recusa do Samu e do Corpo de Bombeiros, a médica da UBS, Pollyana Freitas Ruscitti, e a diretora da escola, Maria Rosa Pereira de Andrade, partiram em direção ao hospital em um carro da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). No caminho, após três tentativas de ligações, a médica foi atendida pelo Samu e insistiu que ao menos uma ambulância os interceptasse. O que ocorreu somente quando estavam fora da reserva, próximo do Hospital Vida, onde tentaram, sem sucesso, reanimar a adolescente indígena. Em depoimento ao MPF, Pollyana afirmou “que as chances de reversão da parada cardíaca seriam maiores caso a vítima tivesse recebido o atendimento emergencial por parte do SAMU, visto que eles possuem o aparato necessário para reverter o quadro de saúde da paciente”.
Joice foi vítima de uma determinação racista e ilegal que vigorou de 2012 a 2019 no Samu de Dourados, que proibia ambulâncias e profissionais de saúde do órgão de entrar na centenária reserva indígena, com cerca de 15 mil habitantes de etnias Terena, Guarani e Kaiowá. De acordo com o MPF, a determinação de não atendimento foi oficializada pelo ex-coordenador do órgão Eduardo Antônio da Silveira, sob a alegação de falta de segurança para as equipes médicas — orientação válida somente para o território indígena. Durante a sua gestão, até 2017, Silveira afirmava que tal decisão foi tomada em consonância com o MPF — afirmação que o órgão alega ser mentirosa. Seus sucessores Jony Santana e Renato Vidigal seguiram a mesma toada. Os três se tornaram réus por racismo e homicídio culposo pela prática negligente e discriminatória mantida por eles no decorrer de seus mandatos, que culminou na morte da indígena.
Além dos ex-coordenadores do órgão, a técnica auxiliar de regulação médica (TARM) Greicy Kelly Barbieri Mendonça também é ré. Foi com ela que a diretora da escola, Maria Rosa Pereira de Andrade, conversou ao ligar para pedir socorro. A técnica afirmou que o Samu não estava autorizado a entrar na aldeia. Para o MPF, Greicy Kelly “recusou propositalmente o atendimento à indígena, uma vez que acolheu determinação ilegal estabelecida pelos coordenadores gerais do SAMU”. O órgão afirma que, ao acatar a determinação ilegal de seus superiores, Greicy Kelly foi racista e agiu de forma preconceituosa negando ajuda à adolescente.
Maria Rosa ligou também para o Corpo de Bombeiros. Ela foi atendida pelo sargento Ayrthon Oliveira Mota, outro réu no processo. Mota disse à diretora da escola que a responsabilidade pelo atendimento era da Sesai e que não havia ambulância disponível no órgão para prestar socorro a Joice. Mas os registros de conversa do Samu indicaram o contrário. Mota disse a Greicy Kelly que havia uma ambulância em trânsito, além de outra que estava na oficina. Sendo assim, para o MPF o bombeiro militar negou atendimento. Na acusação, o órgão afirma que Mota atribuiu a responsabilidade do Corpo de Bombeiros para a Sesai, que não possui competência para os atendimentos de urgência, e tentou “se safar” de suas atribuições, assim como o Samu.
Para o procurador do MPF em Dourados, Marco Antônio Delfino, não há nenhuma justificativa lógica ou jurídica para negar atendimento “em plena luz do dia” a uma adolescente indígena. “A única justificativa é a discriminatória, racista. Não há outra explicação. É entender que pessoas têm menos direitos do que outras. Se a mesma situação tivesse ocorrido em qualquer outro bairro da cidade, em especial, algum de classe média alta, isso não teria ocorrido”, diz Delfino.
O procurador explicou que a alegação de que não há segurança para prestar atendimento é extremamente frágil. Segundo ele, os órgãos públicos generalizam e culpabilizam toda uma comunidade pelos erros que duas ou três pessoas cometem. “É sempre os indígenas, as indígenas. Não, foi o cidadão ‘tal’. E esse cidadão ‘tal’ tem que ser punido. Existe lá [na reserva indígena] uma multiplicidade de pessoas. Como você pode impedir que 15 mil pessoas não sejam atendidas por que duas ou três pessoas tiveram determinado comportamento? O Estado tem esse processo desumanizador e generalizador que é absurdamente racista”, afirma Delfino.
Pretextos que levam à morte
Jéssica Quevedo Arce esteve ao lado de Joice o tempo todo. Da UBS ao Hospital Vida, ela presenciou as inúmeras falhas do Estado que acarretaram a morte de sua irmã. A notícia do andamento do processo a surpreendeu. “É difícil acreditar que haja justiça, mas eu espero que ela seja feita. Minha irmã poderia estar aqui comigo hoje, mas erraram e não tenho mais ela do meu lado”, diz Jéssica. Ela conta que é difícil acreditar que a irmã morreu: “Eu prefiro pensar que ela viajou. Qualquer dia ela volta pra gente se encontrar”.
A morte de Joice expôs a estrutura racista no atendimento do transporte sanitário na região, afirma a liderança indígena Fernando Souza, membro do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condis) da Reserva de Dourados. Ele explica que Corpo de Bombeiros e Samu sempre apresentaram pretextos para não prestar socorro aos indígenas, como não ter permissão para acessar o território, dificuldade de transitar nas ruas da reserva e insegurança dos profissionais de saúde. “Nós, indígenas, somos cidadãos. Pagamos nossos impostos. Temos direito às políticas sociais. Negar atendimento de urgência e emergência à nossa comunidade é uma atitude preconceituosa”, afirma.
Souza explicou que, para tentarem driblar as dificuldades impostas pelos órgãos e terem acesso à saúde, os indígenas acabaram aceitando a ideia de encontrar com o Samu fora da reserva. “Acabou sendo feito assim para podermos salvar vidas. Era isso ou esperar a disponibilidade de uma viatura policial para acompanhar a ambulância até o local do atendimento”, diz. “É perigoso manusear um paciente em estado grave e transportá-lo em um veículo não adequado. Além disso, quando esperávamos o aparato policial, por vezes, levavam horas para chegar. Quando é urgência, um minuto de atraso já coloca em xeque a vida da pessoa. Fizemos isso por anos. Sempre nos trataram com muita negligência.”
Flávio Vicente Machado, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), afirma que a morte de Joice simboliza todo racismo, negligência e desumanidade que existe contra o povo Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, em especial na região de Dourados. “A falta de atendimento na reserva é um problema crônico. As lideranças denunciam isso há muito tempo. Essa negligência está baseada no racismo e estruturada numa desumanização para justificar que não há problema na morte dessas pessoas. Na concepção de muitos, elas não servem para a sociedade. Esse é o papel da desumanização: você liberar para que essas pessoas possam sofrer toda e qualquer consequência nociva à vida delas, sem nenhum tipo de peso moral ou criminal.”
Outro lado
Em resposta à Agência Pública, Renato Vidigal, que coordenou o Samu de fevereiro a novembro de 2019, alegou que nunca apoiou tal determinação. “Os funcionários do Samu serão testemunhas de que eu sempre defendi, sim, atender dentro da aldeia”, diz Vidigal. Ao MPF, os TARMs e uma médica reguladora do órgão afirmaram que o ex-coordenador nada fez para alterar a determinação. Não é primeira vez que Vidigal senta no banco dos réus. Desde novembro de 2019, ele cumpre pena por ter desviado entre 2017 e 2018, período em que foi secretário de Saúde de Dourados, recursos públicos destinados à aquisição de alimentação hospitalar para pacientes internados e acompanhantes. Atualmente, ele cumpre pena em casa, devido à pandemia.
A defesa de Eduardo Antônio da Silveira, o advogado Felipe Cazuo Azuma, disse que não é verdade que seu cliente criou uma determinação proibindo a entrada de ambulâncias e profissionais da saúde na reserva indígena. “Ele não tinha sequer poderes para isso, tal fato é atribuição do secretário de Saúde e não dele”, afirma Azuma. O advogado disse que Silveira fez apenas uma comunicação interna para o secretário de Saúde, expressando a preocupação dele com a segurança da equipe do Samu. Sobre a acusação do MPF de que Silveira mentiu sobre o envolvimento do órgão para criar a determinação, Azuma afirmou que isso nunca ocorreu. “Enquanto coordenador do Samu, o Eduardo foi o único que tentou resolver esta situação de atendimento na aldeia, em reuniões com o MPF, mas não foi possível. Ninguém quis se responsabilizar pela segurança da equipe do Samu. Eduardo em nenhum momento mentiu sobre fato algum, afirmando nada”, diz o advogado.
Jony Santana, que coordenou o Samu de fevereiro de 2018 a fevereiro de 2019, não respondeu ao pedido de entrevista feito pela reportagem. Greicy Kelly Barbieri Mendonça continua trabalhando no Samu. Ela disse que falará sobre o caso somente em juízo. O atual coordenador do Samu de Dourados, o médico Sandro Barreto dos Santos, optou por não se pronunciar sobre as gestões passadas. E afirmou que em sua gestão a urgência e emergência atendem normalmente a reserva indígena. O médico afirmou ainda que, em casos de chamados noturnos, em situações de violência, o órgão conta com o apoio da Força Nacional ou da Polícia Militar.
Fizemos contato com a chefe da Divisão de Atenção à Saúde Indígena do Mato Grosso do Sul, Eliete Domingues Magione, para saber qual o posicionamento da Sesai diante do desafio do transporte sanitário na Reserva Indígena de Dourados, mas ela não respondeu ao pedido de entrevista.
A assessoria de imprensa do Corpo de Bombeiros afirmou que ainda não recebeu nenhuma notificação oficial sobre a denúncia contra o sargento Ayrthon Oliveira Mota. E não se pronunciou sobre o caso.
Fonte: apublica.org