De: Thiago Domenici/Agência Pública
O embarque para Roraima na segunda-feira passada, 29 de junho, de uma comitiva com militares, agentes de saúde, médicos da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde e jornalistas no KC-390, da Força Aérea Brasileira (FAB), maior cargueiro militar da América Latina, causou uma saia-justa ao Exército brasileiro.
Chamada de Operação Covid-19, a comitiva levou 4 toneladas de suprimentos como máscaras cirúrgicas, álcool etílico, testes rápidos, avental hospitalar descartável, protetor facial, toucas e medicamentos — entre eles milhares de comprimidos de cloroquina.
O destino do material eram os pólos dos distritos Sanitários Especiais Indígenas Yanomami (Dsei-Y) e Leste de Roraima (Dsei-L, na região de Raposa Serra do Sol).
“Estamos muito revoltados da forma como foi feito. A gente não foi consultado. Por isso, de imediato mandei documento para o ministério público federal de Roraima”, disse à Agência Pública Junior Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-Y).
Agora, o MPF investiga se a missão representou riscos de contágio de Covid-19 para os indígenas — alguns de recente contato, como os Yanomamis do polo base Surucucu, visitado pela comitiva no dia 1 de julho, data da coletiva de imprensa do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva.
Fontes disseram à Pública que em muitos momentos as regras de distanciamento social não foram respeitadas. “Normalmente seria apenas médicos e indígenas, como sempre foi, mas parecia um safari”, disse Bruna*, que avalia que a situação colocou em risco os indígenas. “Os indígenas esperavam o atendimento. Não esperavam os veículos de comunicação”, conta Bruna, atribuindo a responsabilidade ao Ministério da Defesa.
Um vídeo de duas lideranças Yanomamis presente na ação do exército circulou na semana passada com críticas à Funai.
O Exército afirmou que só embarcaram na “Missão Yanomami/Raposa Serra do Sol” os que apresentaram exames RT-PCR negativos para Covid-19 e que o uso de máscaras era obrigatório. Antes do embarque, também foi medida a temperatura, segundo a corporação militar.
No entanto, ao menos três fontes relataram à reportagem que não houve determinação de quarentena prévia entre o momento da realização do exame RT-PCR e o dia da viagem para Roraima. “Quando recebi as informações sobre essa operação Covid-19, eu não fazia a mínima ideia de que iriam tantos profissionais e nem de que não haveria um controle mínimo de distanciamento dos mesmos junto aos povos indígenas”, diz Joana*, que se diz constrangida com a situação. “Me incomodou profundamente assistir tamanha violência de tantos cliques e imagens de um povo tão forte e incrível reduzido à imagens exóticas”, afirma.
Para Junior Yanomami, a situação foi desrespeitosa. “No meio da pandemia fazer propaganda, não queremos. Não somos objeto, não somos propaganda do governo”, afirmou.
Em nota, o Exército afirma que atuou “perfeitamente dentro de suas atribuições constitucionais”. “A imprensa foi convidada a participar da comitiva para pudesse ser registrado com total transparência, a seriedade e o comprometimento com que o Ministério da Defesa, o Ministério da Saúde e a Funai estão atuando nesta Operação. E que as informações prestadas a estes formadores de opinião pudessem refutar os argumentos de algumas organizações, que insistem em divulgar informações inverídicas, mesmo quando confrontados com dados reais”, diz trecho da nota que não especifica quais organizações e nem diz quais as informações inverídicas.
O Exército afirmou ainda que os atendimentos “foram informados pela Funai” e que era de “total e livre escolha de cada indígena se dirigir ou não ao local de atendimento”.
“Funai, nenhuma secretaria de saúde indígena comunicou a gente que iria acontecer uma comissão para visitar e deixar o remédio cloroquina, e com imprensa, pra terra indígena Yanomami”, rebate Junior Yanomami.
Segundo o exército, a cloroquina será usada para malária e não Covid-19. “Esta medicação vem sendo usada há mais de 70 anos para o tratamento da malária, doença endêmica, com milhares de casos registrados anualmente na Região Amazônica”.
Em seu site, a Sesai afirmou que, durante a ação, foram realizados testagem para Covid-19. “Todos os indígenas testados durante a missão deram resultado negativo”.
Durante a coletiva em Roraima, o ministro da Defesa afirmou que a pandemia estaria “sob controle” em terras indígenas — até sexta, segundo o Ministério da Saúde, eram 160 casos confirmados de Covid-19 entre os Yanomami, com 4 óbitos. A TI Yanomami é a maior do país em área, com 9,7 milhões de hectares e abriga, aproximadamente, 27 mil pessoas.
Segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI-Norte I), a afirmação do ministro “não se justifica sob vários aspectos”. A entidade denunciou em nota a ausência de um plano emergencial para atuação naquele território indígena e a falta de um plano para retirada de todos os garimpeiros.
Na última sexta-feira, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), a pedido do MPF, pediu que o governo federal adote um plano emergencial para conter o avanço da doença na TI Yanomami.
Entre outros pontos, o TRF1 cita o combate ao garimpo ilegal, e pede a extrusão dos infratores da TI. “Plano, e respectivo cronograma, devem ser apresentados por órgãos públicos em até cinco dias e executado no prazo de dez dias após a conclusão, garantindo a execução durante todo o período da pandemia”, registra a decisão.
Também na sexta-feira, a liderança indígena Dário Kopenawa se encontrou com o vice-presidente Hamilton Mourão em Brasília. No encontro, Dário levou uma mensagem do povo Yanomami e Ye’kwana pela retirada imediata dos garimpeiros ilegais do território.
Mourão se comprometeu a reabrir as quatro Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes), que funcionam como postos de fiscalização e controle dentro da TI Yanomami. Segundo Dario, também afirmou que vai estudar a possibilidade de uma desintrusão do garimpo mas não explicou como e quando será realizada a ação.