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Das feridas expostas à cura: Violência doméstica pode acontecer com qualquer mulher

Atualmente Ully* e Matilda* transbordam alegria, têm muitos projetos, são bem-sucedidas e felizes. Cada uma tem três filhos e alguns netos.

Ully casou-se jovem e por amor. Em pouco tempo engravidou e aquele sonho de construir ao lado do marido uma família feliz aos poucos foi se transformando em pesadelo.

Em sua primeira gravidez, ela percebeu que era violentada moral e psicologicamente, mas na época, em torno de 40 anos atrás, no Brasil, a pauta “violência doméstica” era muito tímida. Foi durante sua segunda gravidez, ao apanhar do marido, é que entendeu que precisava mudar o rumo de sua vida.

”Eu quase perdi minha criança depois dos tapas e pontapés… sangrei quase 24h trancada dentro de casa e sem poder pedir ajuda. A situação estava extrema, há semanas vivia com apenas uma refeição durante o dia inteiro e fazia mamadeira de água e amido de milho para o meu mais velho. Estávamos muito endividados… Quando aconteceu essa situação decidi que não era isso o que eu queria e nem merecia”, afirma.

Ully conta que mesmo depois de separada e terminando o curso superior o ex ainda tentou matá-la. “Um dia estava saindo da faculdade que fazia no período noturno, porque trabalhava o dia inteiro, ele jogou o carro em cima de mim para me assassinar”, lembra.

Na época, universitária, mãe solo de duas crianças e com uma fé e determinação inabaláveis, mesmo com as marcas psicológicas, deu a volta por cima. Com a ajuda dos pais conseguiu se reerguer e refazer a vida. “Nessas horas o apoio da família é fundamental. Eu tinha vergonha de contar para os meus pais o que estava acontecendo, mas ao saberem da realidade nunca me julgaram e fizeram de tudo para mim e meus filhos. Na época da separação, abri mão de todos os bens materiais, de pensão alimentícia porque o que eu desejava era paz. Abri mão de tudo pela felicidade de estar bem, viva e com meus filhos”, relata.

 

Agora, imagine casar com alguém decidido pelos pais e, no segundo dia de casamento, descobrir que o marido é alcoólatra e violento. Bem, esta é outra história, dessa vez, da Matilda que aconteceu há, aproximadamente, 50 anos. “Nem eu nem maus pais sabíamos que ele bebia e se transformava. Após me casar, em cinco anos perdi meus pais, e eles nunca souberam o que eu e meus filhos passávamos. Eles tinham sérios problemas de saúde e, assim, decidi poupá-los”, revela.

Acreditando que poderia construir um lar na paz e na harmonia, entre indas e vindas houveram três separações em 24 anos de relacionamento. “Não sei explicar… quando me separava as pessoas me culpavam. Diziam que ele bebia porque tinha-o deixado. Aí quando eu voltava acreditando em uma reconciliação, o ciclo de violência começava novamente. Apoio, de fato, para conseguir me desvincular nunca tive. Os pais dele sabiam, mas não tinham muito como ajudar”, relembra.

“Por diversas noites eu e meus filhos passávamos a noite em pé, encostados nas árvores do quintal com medo dele matar a gente dormindo. Um dia cheguei do trabalho e meu filho mais velho tinha subido no telhado e se escondido dentro da caixa d’água para fugir do pai com medo de morrer. Eu fazia uns bicos escondidos lavando e passando roupa porque precisava sustentar a família. Todo o dinheiro que ele conseguia gastava com bebida. Ele chegou a vender uma casa e todo o valor da venda foi para o vício”, confessa.

O ponto final da relação foi quando o ex planejou sua morte. “Meus filhos foram todos para o grupo de oração e ele aproveitou que ficamos somente nós dois em casa e tentou me matar e por muito pouco não conseguiu”, finaliza.

Essas duas histórias são de servidoras públicas que trabalham na Procuradoria-Geral do Estado de Mato Grosso do Sul (PGE/MS). Mas, a violência doméstica espreita os lares de milhares de outras brasileiras. Então, partindo da premissa de que o compartilhamento desses fatos reais pode encorajar outras mulheres a pedir ajuda, elas aceitaram dividir suas experiências e fortalecer a campanha Agosto Lilás com os seus relatos. As cicatrizes pelo corpo desapareceram com o tempo, mas ficaram para sempre na memória e no coração.

*As identidades verdadeiras das entrevistadas foram protegidas. Já os nomes fictícios, escolhidos propositalmente:
Ully significa “poderosa”, “aquela que prospera”, “determinada”, “jovem”.
Matilda significa “forte guerreira” ou “força na batalha”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capa: Freepik