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A peste e a guerra

Enfermeira militares usando máscaras em 1918.

Amigo leitor, vivemos hoje uma pandemia que, até o fechamento deste texto, matou quase três milhões de pessoas no mundo. Não é a primeira epidemia a afetar nossa vulnerável espécie, mas talvez seja a de maior impacto nos meios de informação. Há cem anos ocorreu algo muito pior, uma combinação especialmente perversa, que mesclou a peste e a guerra na nociva tarefa de exterminar populações.

A Primeira Guerra Mundial iniciou no Leste da Europa em 1914, e,em 1918,vinha causando dor e morte também na Ásia e África. Milhões de soldados das Américas estavam também envolvidos.Para agravar as coisas, naquele ano surgiu um novo vírus, com letalidade e transmissibilidade muito acima dos anteriores. Foi a chamada “Gripe Espanhola”.

O nome traz uma ironia. A Espanha não foi nem a origem da doença, nem a nação mais atingida, apenas estava neutra na Guerra e não censuroua imprensa. As notícias sobre a peste na Espanha, onde até o Rei adoeceu, circulavam pelo mundo. Já os governos dos países envolvidos na guerra censuraram as informações para não piorar o moral interno de cada povo. Daí veio o nome popular da doença.

A origem do vírus é controversa. Há estudos localizando os primeiros casos no estado do Kansas, EUA, ou em Étaples, na França ou, ainda, no norte da China.O fato é que, pela primeira vez na saga humana, uma guerra levou à circulação de milhões de soldados entre continentes, à concentração daqueles em imensos acampamentos e campos de treinamento e ao uso intensivo de trens e navios superlotados. Com isso, o contágio foi de uma rapidez e extensão inéditas.

Além disso, a Guerra trazia, para soldados e povos envolvidos, a má alimentação, o estresse, a exposição ao clima adverso e a estafa física e mental, contribuindo para derrubar a resistência imunológica. Os meios de saúde estavam sobrecarregados ao atender feridos, mutilados, atingidos por gases venenosos e enlouquecidos. Com tudo isso, a primeira guerra da Era Industrial foi o palco perfeito para uma epidemia especialmente mortífera.Ocorreram três “ondas” da doença, sendo a segunda, ocorrida em agosto de 1918, a mais letal.

Estima-se que um terço da humanidade adoeceu, e houve um número entre cinquenta e cem milhões de óbitos. Em cada país o impacto variou, mas foi sempre pesado. Na Índia, por exemplo, 17 milhões de mortos, 5% da população. Nos Estados Unidos, só no mês de outubro de 1918 morreram 200 mil pessoas. Algumas ilhas do Pacífico perderam 92% dos habitantes.

A guerra trouxe a peste para o Brasil: um navio inglês desembarcou doentes em vários portos, em setembro de 1918. Simultaneamente, marinheiros brasileiros que foram à Guerra voltaram enfermos – e a gripe se espalhou. No Brasil de então,84% da população vivia no meio rural, onde o contágio era mais difícil. Mesmo assim, 35.000 pessoas morreram em poucas semanas, incluindo o Presidente da República, Rodrigues Alves.Outros estudos históricos chegam a citar até 300.000 brasileiros mortos no período, em decorrência da gripe espanhola e suas consequências, mas a deficiência das estatísticas da época deixa margem a incertezas.

O fim da epidemia foi repentino, ao final de 1918 e início de 1919, embora alguns casos pelo mundo persistissem até o final deste ano.Há controvérsias dos cientistas se a causa do final abruptofoi a imunidade do rebanho ou se uma cepa de vírus menos mortal se tornou dominante.

A guerra influenciou na peste, e esta influenciou na guerra. Os Impérios Centrais, Áustria-Hungria e Alemanha, foram muito mais impactados pela doença do que os Aliados (Inglaterra, França e Rússia), o que acelerou o fim do conflito, encerrado no Armistício de 11 de novembro de 1918.

Vivemos hoje um período atípico, trazido pela COVID-19, com mortes, luto e prejuízos. Muito mais sofreram nossos bisavôs, no alvorecer do século XX. Dizia o imortal orador e político romano Cícero: “A História é a Mestra da Vida”. O conhecimento histórico do que aconteceu na Gripe Espanhola, e em crises mais recentes, tem favorecido cientistas e administradores no combate ao mal que se abate hoje sobre o mundo.

Até a próxima.

 

Por: Francisco Mineiro